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Tradução como laboratório da linguagem

A prática da tradução pode ser entendida como um “laboratório da linguagem” a partir da corrente teórica da poesia concreta, da década de 1950, em que se buscava reinventar a linguagem e a poesia, procurando testá-las, modificá-las e experimentá-las de modos não convencionais, fugindo do tradicional e condenando o verso à “morte”.

Como aparato teórico para a ideia do ato de traduzir como “laboratório da linguagem”, é possível citar o poema “lygia fingers”, de Augusto de Campos. Nele, o poeta concretista “brinca” com palavras, sons e elementos não linguísticos para dar origem a uma nova maneira de se fazer o uso da língua em termos poéticos.

Nesse poema, é possível observar tanto o uso da linguagem quanto a estrutura desse gênero textual sendo utilizados de maneira diferente do convencional - ou seja, tais processos encontram-se em um “laboratório da linguagem” por estarem sofrendo experimentos e novas utilizações. Há uma certa ruptura da linearidade da linha, pois ela tem palavras em um verso que acabam em outro (como no final do primeiro, em que se tem “finge”, e “rs” no verso de baixo, formando a palavra “fingers”, em inglês), tornando, inclusive, a leitura interrompida. Além disso, há uma exploração no aspecto visual, em que as palavras estão de cores diferentes e, de início, seguem uma lógica desconhecida a partir da cor em que estão pintadas.

(CAMPOS, 1953)

Logo, considerando que Augusto de Campos está dentro do espectro da poesia concreta, observa-se uma espécie de “poesia de invenção” em “lygia fingers”, tendo em vista que esse poema rompe com o tradicional e procura reinventar a forma com a qual é lido, experimentado, interpretado. 

Há, também, a ideia de criação poética na tentativa de traduzir esse poema para outra língua. Isso se dá porque o tradutor, ao tentar fazê-lo, perceberá que se trata de um poema complexo, fruto de uma “brincadeira” com a linguagem, em que não é possível realizar uma tradução que se limite ao seu aspecto literal em termos de escolhas lexicais. Logo, para realizar uma tradução para outro idioma, ele realizará uma nova (re)invenção do poema, pois “[...] tradução de textos criativos será sempre recriação, ou criação paralela, autônoma porém recíproca”(CAMPOS, 2006, p. 35). Além disso, é justamente devido a essa dificuldade em traduzir, por se tratar de um resultado experimental poético e linguístico, que a tradução é possível, pois, conforme Fabri (apud CAMPOS, 2006, p. 32), o ato de traduzir só é possível porque as sentenças têm deficiências, alienações, separações entre signo e significado, arbitrariedades, características as quais permitem múltiplas interpretações e são, consequentemente, atrativas para o tradutor, já que, à medida que um texto apresenta dificuldades, “mais recriável, mais sedutor enquanto possibilidade aberta de recriação.” (CAMPOS, p. 35) ele será, como é o caso de “lygia fingers”.

Outro caso em que é possível observar a concepção de “laboratório da linguagem”, mas, agora, levando em conta o ato de traduzir propriamente dito, é na tradução de Augusto de Campos do “Poema 51”, de Emily Dickinson. No original, tem-se: 


“Bind me - I still can sing

Banish - my mandolin

Strikes true, within -

 

Slay - and my Soul shall rise

Chanting to Paradise -

Still thine” (DICKINSON apud CAMPOS, 2016, p. 130)

 

Em uma tradução literal, palavra por palavra, ter-se-ia “Eu ainda posso cantar” (em “I still can sing”), “Bane-me, meu bandolim” (em “Banish, my mandolin”), o que faria perder a rima entre SING e MANDOLIN. Augusto de Campos, procurando priorizar a rima - em detrimento do sentido semântico -, prefere traduzir os dois primeiros versos para “Ata-me - eu canto assim - / Bane-me - um bandolim” (p. 131), preservando a musicalidade do poema. Esse exemplo demonstra também uma experimentação da linguagem em seu “laboratório”, em que o propósito geral do poema se preserva, mas as escolhas lexicais são alteradas para que as rimas não se percam, o que consequentemente afeta seu o sentido semântico mais específico, mas não o geral. Trata-se, portanto, de um uso diferenciado da linguagem de forma não literal, a qual é recriada em seu “laboratório” com experimentações de sua utilização.

 


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