Muito se discute acerca do “descobrimento” da América e, mais especificamente, da “descoberta” do território brasileiro. Mas, afinal, por que Portugal tinha de colonizar outros países? E qual é a relação dessa necessidade com as do Brasil no século XIX?
Um dos autores relativos a esse tema, Alfredo Bosi, em seu livro “Dialética da colonização” (1992), propõe que a colonização foi uma tentativa de Portugal reafirmar a sua identidade diante do contexto sociopolítico conturbado em que se encontrava. Além disso, o autor Tzvetan Todorov (1982), em “A conquista da América: a questão do outro”, afirma que Portugal precisava se curar de sua “ferida narcísica” ao constatar que não estava sozinho no mundo. No mesmo viés, durante o século XIX, o Brasil também se ocupou da tentativa de reafirmar a sua identidade, a fim de subverter os valores, as ideias e a cultura portugueses que ainda eram vigentes na época. Para isso, alguns autores do romantismo, como José de Alencar, propuseram uma perspectiva indigenista para valorizar os povos autóctones brasileiros, mas sem dar voz diretamente a eles. Propõe-se, então, a análise da valorização tanto portuguesa quanto indígena, mas feita de maneiras diferentes em cada uma dessas situações.
PERSPECTIVAS PORTUGUESAS PELA COLONIZAÇÃO
Para compreender o desejo português de carregar consigo sua
identidade ao redor do mundo, por meio da “descoberta” do Brasil, houve a
acepção de três palavras, nas palavras de Bosi (1992), para o alcance desta
vontade: cultura, culto e colonização. Tais vocábulos derivam do verbo latim colo (no tempo presente), que significa “eu moro, ocupo, trabalho, cultivo”, sendo que o passado é cultus, e o futuro culturus. Dessa forma, quando se analisa estritamente o verbo colo, sob o viés da ocupação, Bosi afirma que a colonização não pode ser tratada como uma via de mão única, ou seja, como apenas uma “corrente migratória”, pois ela é algo que tenta resolver os conflitos que estavam acontecendo em Portugal e tenta dominar a natureza e outros povos. Assim, tendo em vista que colonização parte da palavra colo, pode-se afirmar que o ato de colonizar foi uma tentativa de reexpressão de Portugal e de retomar modos e costumes do país – já que este, na época, enfrentava problemas econômicos, sociais etc e, para resolvê-los, houve a tentativa de ocupação e de criação de uma vida nova no Brasil (como colono), mantendo elementos passados (cultus) e objetivando o futuro (culturus) a partir da imposição de uma nova cultura.
Deve-se ressaltar, ainda, que a colonização trouxe, atrelada à ideia de cultus, uma concepção religiosa em relação à morte, isto é, os colonizadores cultivavam não apenas a terra, mas também os mortos, tentando trazê-los de volta ao presente por meio da cultura – da transmissão de valores, da religião, de símbolos, de técnicas etc.
De acordo com Todorov, Cristóvão Colombo, durante as Grandes Navegações (séc. XV), viajava com intenções cristãs e com o desejo de enriquecer. Logo, a ideia de “descoberta” foi uma invenção - descobrir neste caso seria inventar algo como fazendo parte da Europa, ou seja, territórios a serem descobertos seriam apenas mais uma extensão do continente europeu. Em outras palavras, a cultura e os valores de outros povos não seriam considerados, as diferenças não seriam compreendidas, e haveria apenas a imposição da identidade portuguesa em relação, neste caso, aos povos autóctones. Por esses motivos, pode-se afirmar, então, que Colombo “descobre” a América, mas não os ameríndios.
Tendo analisado todos esses aspectos, afirma-se que Portugal impôs a sua cultura sobre outros povos sem considerar a cultura, os valores, os hábitos etc. pertencentes a estes. Ou seja, o país europeu dominou o que não fazia parte da Europa para se reafirmar perante o momento conturbado pelo qual estava passando.
PANORAMAS BRASILEIROS PELOS ROMANCES DE JOSÉ DE
ALENCAR
A perspectiva já abordada sobre não considerar os povos indígenas como seres dotados de identidade, de valores, de cultura etc exerceu uma influência dominante sobre a sociedade durante muitos séculos. Neste trabalho, considerar-se-á tal influência até o período romântico, no século XIX. Nesta época, como o Brasil era mais caracterizado por elementos portugueses do que por elementos essencialmente brasileiros, os autores românticos buscaram enaltecer os indígenas e tudo aquilo que dizia respeito a eles. A notável presença de elementos portugueses na sociedade é sustentada por José de Alencar no posfácio à 2ª edição de Iracema (apud Telles, 1986), em que ele aponta que, no território português, “o estrangeiro perdido no meio de uma população condensada, pouca influência exerce sobre os costumes do povo: no Brasil, ao contrário, o estrangeiro é um veículo de novas ideias e um elemento da civilização nacional.”
Vale compreender,
assim, a ideia de NAÇÃO, que corresponde a 5 noções: língua, leis, território,
estado e história. Logo, como havia o desejo de uma NAÇÃO brasileira, em sua
totalidade, foi criada uma política do Estado que vai ao encontro à noção de
NAÇÃO, isto é, o Instituto Histórico-Geográfico Brasileiro (IHGB) emergiu,
tanto como um espaço institucional - onde os estudiosos trocavam informações,
reportagens, textos, romances etc -, quanto como um local para que pesquisas
históricas ocorressem - orientadas a buscar, no passado, aquilo que havia de
unidade social, de possível conexão entre as vontades diferentes que existiam
no Brasil, ou seja, para provar que antigamente, no passado colonial, já
existia a vontade de formar uma identidade nacional. É neste momento que surge,
ainda mais evidentemente, o interesse pelos povos originários, pelos
ameríndios, pelos indígenas etc. Este panorama vai ao encontro do que afirma o
francês Ferdinand Denis (1826, apud Cândido, 2002, p. 21), em “Os
brasileiros deveriam portanto concentrar-se na descrição da sua natureza e
costumes, dando realce ao índio, o habitante primitivo e por isso mais
autêntico.”
Para que, então,
todos esses objetivos de fundar uma nação essencialmente brasileira se
concretizassem, alguns autores, como José de Alencar, Gonçalves Dias etc, do
romantismo, foram buscá-los nos indígenas, valorizando suas culturas, idiomas,
tradições, entre outros - mesmo que, em certo grau, ainda existisse algo de
clássico em suas obras, até porque o desejo dos autores não era o de abandonar
completamente o que havia de português no território, mas sim de valorizar
mais e dar mais voz àqueles subjugados e desprezados desde o
“descobrimento” - os indígenas.
Pode-se perceber a
visibilidade dada aos indígenas, principalmente e para os fins deste trabalho,
em algumas obras de José Alencar, a saber, Iracema, O Guarani e Ubirajara. Na
primeira obra, por exemplo, tem-se a história da indígena “Iracema, a virgem
dos lábios de mel, que tinha os cabelos mais negros que a asa da graúna, e mais
longos que seu talhe de palmeira.” (ALENCAR, p. 12, 1865), pela qual um homem
branco se apaixona. Tal romance tenta ilustrar a formação da identidade
brasileira, ou seja, a mescla de elementos europeus (Martim, o homem branco) e
indígenas (Iracema), como já dito anteriormente, já que os escritores
românticos queriam dar mais visibilidade aos povos autóctones, mas sem
desconsiderar os fatores da Europa que se faziam ainda presentes no país.
Entretanto, vale destacar
que há, de certa forma, uma superioridade da cultura europeia em detrimento da
indígena, visto que a castidade de Iracema é quebrada por esta quando eles se
envolvem amorosamente - ou seja, ela renuncia sua própria cultura. Neste ponto
de vista, então, Iracema representa a submissão ainda presente do Brasil à
cultura europeia, enquanto que Martim é o símbolo do colonizador português, ou
seja, da cultura portuguesa vigente no território.
Já na obra O Guarani,
percebe-se a importância dada ao indígena quando Alencar descreve um personagem
autóctone no trecho:
“[...] via-se um índio na flor da
idade.
Uma simples túnica de algodão, a que os
indígenas chamavam aimará, apertada à cintura por uma faixa de penas
escarlates, caía-lhe dos ombros até ao meio da perna, e desenhava o talhe
delgado e esbelto como um junco selvagem. Sobre a alvura diáfana do algodão, a
sua pele, cor do cobre, brilhava com reflexos dourados; os cabelos pretos
cortados rentes, a tez lisa, os olhos grandes com os cantos exteriores erguidos
para a fronte; a pupila negra, móbil, cintilante; a boca forte mas bem modelada
e guarnecida de dentes alvos, davam ao rosto pouco oval a beleza inculta da
graça, da força e da inteligência.” (ALENCAR, 1857, p. 20)
Nesta passagem,
observa-se como é relevante para o autor as características do indígena quando
ele o descreve como um sujeito “na flor da idade”, com uma pele que “brilhava
com reflexos dourados” e com uma “boca forte mas bem modelada”, demonstrando
uma “beleza inculta da graça, da força e da inteligência”.
Por fim, tem-se a
obra Ubirajara, em que Alencar exalta o personagem principal, o qual é um
indígena, Jaguarê, como sendo um guerreiro rico em bravura e tido como herói.
Observa-se essa exaltação na passagem em que o próprio personagem se descreve:
- Eu sou Jaguarê, filho de Camacã,
chefe da valente nação dos araguaias, que vem de longe em busca da terra de
seus pais. Minha fama corre as tabas e tu já deves conhecer o maior caçador das
florestas. Mas Jaguarê despreza a fama do caçador; ele quer um nome de guerra,
que diga das nações a força de seu braço e faça tremer aos mais bravos.
(ALENCAR, 1874, p. 17)
Portanto, afirma-se
que os escritores brasileiros, neste caso, especificamente, José de Alencar,
tentaram valorizar a cultura indígena por meio da escrita e da literatura, mas
sem dar voz aos donos dessa cultura há tempos marginalizada e menosprezada.
O QUE SE CONCLUI
ENTÃO?
Após as análises
feitas sobre a reafirmação da identidade cultural de Portugal, por meio da
colonização, e da cultura indígena, a partir das obras mencionadas de José de
Alencar, pode-se afirmar que a primeira mostra-se muito mais subversiva do que
a segunda, visto que pretendia não só se sobrepor à cultura do país de chegada,
como também dizimar e extinguir comunidades inteiras caso fosse preciso. Já sob
a perspectiva da valorização dos indígenas, por meio de José de Alencar,
percebe-se uma tentativa mais branda de sobrepor uma cultura à outra, mas sem
desconsiderar uma em detrimento da outra - isto é, valorizar comunidades
autóctones sem desprezar a cultura portuguesa.
Ademais, percebe-se
que os colonizadores portugueses, ao encontrarem terras já habitadas e com uma
história e uma cultura, fora da Europa, passaram a não se ver mais como o
centro do mundo, isto é, eles se deram conta de que não estavam sozinhos no
globo e que o continente europeu não era o único local onde havia civilização e
tecnologia. Foi uma descoberta, então, de civilização inédita, mas não da
América em si, pois nela já haviam comunidades ameríndias. Já em relação ao
panorama de Alencar, afirma-se a ciência do autor, e da comunidade brasileira
em geral, em relação à legítima existência de povos distintos em um mesmo
território - europeus, majoritariamente portugueses, e indígenas no Brasil, ou
seja, não há uma concepção colonial portuguesa de que a Europa é o único lugar
do mundo capaz de conter e manter civilizações, cultura, história e
importância.
Por fim, alega-se
que, diante de todas as considerações feitas, a Europa nunca perdeu totalmente
o seu valor e seus resquícios dentro do território brasileiro, visto que impôs
sua cultura na época da colonização e, mesmo após 300 anos, com o Romantismo,
ainda esteve presente no país, mas de maneira mais sutil e deixada, de certa
forma, de escanteio para que as comunidades autóctones mostrassem o seu valor,
porém, sob a perspectiva de um autor que não era indígena. Logo, mesmo que tais
comunidades tenham ganhado mais visibilidade na cultura brasileira, não foi por
meio de uma atuação direta delas, tornando-se incoerente afirmar, total e
completamente, que a cultura indígena ganhou a visibilidade necessária, pois a
eles não foi dada a voz.
Comentários
Postar um comentário