Caetano Veloso. Gal Costa. Gilberto Gil. Rita Lee.
Com certeza, você já ouviu falar de como eles são fundamentais para entender a nossa cultura, música e história. Mas, afinal, por que eles são tão importantes? E como podemos enxergá-los em uma perspectiva macro, levando em conta a América Latina e não só o Brasil? E o que o Che Guevara tem a ver com isso?
No emergir dos anos 1960, deu-se origem no Brasil um movimento chamado Tropicália (ou Tropicalismo), o qual marcou muitas vertentes da arte, como a música, o cinema e o teatro. No cenário musical, foi encabeçada por diversos artistas brasileiros, como Rita Lee, Gilberto Gil, Gal Costa, Caetano Veloso, etc. Em algum momento de sua trajetória de vida, seja acadêmica, seja musical, você provavelmente já se deparou com a capa desse disco, que é a peça fundamental da inauguração tropicalista:
A Tropicália chegou com um endereçamento muito claro: o de revolucionar a cultura brasileira, de criar um “ideal nacional-popular”, por meio de manifestações progressistas, disruptivas, revolucionárias e até mesmo “espalhafatosas” - se levarmos em conta a vestimenta do grupo que a compunha. Todos esses traços rompiam com modelos tradicionais de fazer música, tanto na maneira que os artistas se vestiam quanto nos instrumentos e nas letras das músicas.
Apesar disso, é necessário recuar para que se entenda, de fato, esse movimento cultural e artístico. Devemos nos localizar no tempo: a Tropicália emergiu durante o Modernismo, período literário e artístico que propunha resgatar a cultura popular - na estética, na política, na ética, na arte - com técnicas de vanguarda. Ao mesmo tempo, a Bossa Nova, gênero musical brasileiro surgido no mesmo período, buscava conquistar seu espaço no país, tendo como principais artistas Tom Jobim, João Gilberto, Chico Buarque, etc. Mais uma vez, eu tenho certeza que você já viu a capa desse disco - foi num meme, estou certa?
(Fonte: G1 - Globo)
Além disso, é importante lembrar: nos anos 60, um acontecimento marcou a história política brasileira. O golpe militar de 64 foi um plano violento do exército brasileiro que tinha como propósito deter a “ameaça comunista” iminente no país. Ele foi marcado por muita violência, torturas, perseguições, censuras... por uma lista infinita de posicionamentos e de atitudes inconstitucionais que, até hoje, mostram-se imprescindíveis de serem estudados, criticados, repudiados para que nunca se repitam.
Em meio a esse cenário de ascensão da Bossa Nova, da Tropicália e da Ditadura Militar, muita repressão aconteceu. Artistas como Caetano Veloso, Gilberto Gil e Chico Buarque foram perseguidos e censurados e tiveram de sair do Brasil, tamanha era a repressão contra a arte que produziam. Inclusive, uma das músicas não aprovadas pelo governo militar ditatorial chama-se “Soy loco por ti, América”, cantada por Caetano Veloso, mas composta por Gilberto Gil e por José Carlos Capinan. Ela faz parte do disco "Caetano Veloso", de 1968:
"El nombre del hombre muerto
Antes que a definitiva
Noite se espalhe em Latino américa
El nombre del hombre
Es pueblo, el nombre
Del hombre es pueblo..."
No verso acima, podemos observar a menção a um homem morto (“el nombre del hombre muerto”). Quem seria esse homem? Para responder a essa pergunta, é necessário, mais uma vez, voltar no tempo.
Ernesto Guevara de la Serna, conhecido mundialmente como Che Guevara, foi um médico, guerrilheiro e revolucionário comunista nascido na Argentina em 1928. Ao fazer, em um determinado período, uma viagem pela América do Sul, pôde se atentar à pobreza que havia no continente sul-americano e, a partir disso, continuou suas viagens pela América do Sul até ter contato com ideais revolucionários para reverter essa situação de precariedade que pôde presenciar.
Che Guevara se destacou como líder comunista em muitos países e movimentos da América do Sul, como na Revolução Cubana, em que ajudou a derrubar o ditador Fulgêncio Batista. Ele foi visto, por muitos, como uma espécie de mito: tanto na concepção de herói, quanto na de uma figura utópica, de que a América Latina poderia, no fim, vencer todas as suas desigualdades. Por esse motivo, era visto como “o homem do povo”, o que nos permite fazer, então, uma alusão à música de Caetano Veloso: a quem se refere, então, “El nombre del hombre / Es pueblo”? Ernesto Guevara de la Serna.
Tendo em vista, então, esse caráter atribuído a Che de lutador comunista, de homem do povo e de herói contra as ditaduras latino-americanas, alude-se a outra parte da música de Caetano Veloso: qual noite se quer impedir que se espalhe? As noites em que as ditaduras se iniciaram na América Latina - a do Brasil, por exemplo.
Além disso, há outro fator presente na música do Caetano tropicalista - uma certa exaltação à natureza tropical brasileira e ao teor guerrilheiro sempre visto na América Latina. De fato, em inúmeros estudos, é possível observar a defesa de vários autores a respeito do caráter guerrilheiro da América Latina: aqueles que lutavam eram sempre os que menos se esperaria que fizessem parte de algum movimento revolucionário. O guerrilheiro latino é um território desconhecido.
É evidente que, ao ser comparada com potências mundiais, como os Estados Unidos, a América Latina perde em poder bélico e militar; entretanto, é justamente nessa fraqueza em que os latino-americanos encontram sua força - com poderio militar inferior, a estratégia é se espalhar pelo território, com movimentos imprevisíveis, mas, ao mesmo tempo, calculados e certeiros para acertar o inimigo, tão aparente com todo o seu armamento inicialmente imbatível. A fraqueza da América Latina em termos bélicos foi convertida por um ideal subversivo e corrosivo entranhado em guerrilheiros espalhados pelo território, quase como invisíveis para os inimigos - essa é a guerra de guerrilha que compõe o território latino-americano. A alusão a esse aspecto bélico é vista nos trechos em negrito da música de Caetano:
"Soy loco por ti de amores
Um poema ainda existe
Com palmeiras, com trincheiras
Canções de guerra
Quem sabe canções do mar"
A exaltação à natureza também está presente no verso: na menção a “palmeiras”, árvore típica de paisagens tropicais, como no Brasil. Estabelece-se, também, uma relação com a “Canção do Exílio”, de Gonçalves Dias, (“Minha terra tem palmeiras onde canta o sabiá”), poema literatura romântica brasileira, especificamente da primeira geração. Outras alusões à natureza presentes em “Soy loco por ti, América” são vistas em:
"Tenga como colores [paisagem tropical com muitas cores]
La espuma blanca [espuma do mar tropical]
De Latinoamérica
Y el cielo como bandera" [céu azulado tropical]
Por fim, outra observação passível de ser comentada diz respeito a um aspecto erótico e amoroso presente na canção, o que vai contra “a moral e os bons costumes” tão religiosamente destacados e seguidos à risca durante o golpe de 64. O próprio ritmo da música, com a guitarra elétrica - marca forte da Tropicália - e com ritmos que fazem o corpo querer se mexer, marca esse teor erótico. Além disso, no que diz respeito à letra, há uma mistura entre o fogo da paixão de conhecer uma mulher e o fogo que remete, mais uma vez, ao aspecto guerrilheiro da América Latina, além da menção a elementos culturais de outros países:
"Soy loco por ti, América
Yo voy traer una mujer playera [aspecto amoroso e da natureza, do cenário tropical das praias - “eu vou conquistar uma mulher praieira”)
Que su nombre sea Marti
Que su nombre sea Marti...
Soy loco por ti de amores
Tenga como colores
La espuma blanca
De Latinoamérica
Y el cielo como bandera [construção de uma moldura de um encontro amoroso, em que o cenário é marcado por elementos da natureza tropical que são exaltados]
Y el cielo como bandera...
Soy loco por ti, América
Soy loco por ti de amores...(2x)
Sorriso de quase nuvem
Os rios, canções, o medo
O corpo cheio de estrelas
O corpo cheio de estrelas [mistura do encontro amoroso, erótico, com elementos naturais]
Como se chama amante [amor, erotismo]
Desse país sem nome
Esse tango, esse rancho [tango - argentino; rancho - gênero típico do interior da América Latina]
Esse povo, dizei-me, arde
O fogo de conhecê-la" [o fogo de conhecer uma mulher e o fogo das guerrilhas da América Latina]
Agora que entendemos todos esses atravessamentos - dentre muitos outros - presentes na música de Caetano Veloso, como alusão a um mito comunista, à natureza brasileira, ao erotismo, etc., não restam dúvidas de que essa música não foi aprovada pela imprensa comandada, invadida e vigiada pelo exército brasileiro. As produções de Caetano tinham muito teor libertário, progressista e contra "a moral e os bons costumes". Ele, então, poucos meses após o lançamento de seu disco (1968) com seu próprio nome - e, inclusive, com a música "Soy loco por ti, América"-, foi preso e, 1 ano depois, exilou-se em Londres.
Por fim, resta uma pergunta final: quais são as implicações desse panorama traçado? Nos panos de fundo da Tropicália, é possível perceber atravessamentos que vão muito além de apenas do desejo de criar um novo gênero musical. Esse movimento foi marcado pela vontade fumegante de subverter o tradicional, a moral e os “bons costumes” - que costumes são esses? Autoritários? De tortura? De censura à liberdade de expressão? De perseguição? -, de ir em direção ao progresso, a uma identidade nacional com contornos latino-americanos das guerrilhas que marcam o continente, da transformação da fraqueza em força, da música e da arte de protesto. Da invenção de um novo mundo de experimentações que, sem dúvidas, marcaram a história política, artística, musical, literária e cultural do Brasil.
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